O que determina, no Brasil e, mais especificamente, nas periferias, quem será alvo prioritário da violência? Quem ficará vivo e quem será morto? E, dentre essas mortes, haverá as que são mais ou menos toleráveis para a sociedade?

Estas e outras questões conduzem as reflexões de Ana Beraldo, Doutora em Sociologia pela UFSCar, no livro "Negociando a vida e a morte: Estado, igreja e crime nas margens urbanas", recém-lançado pela EdUFSCar, no âmbito da Coleção Marginália de Estudos Urbanos, volume 7, organizada pelo Núcleo de Pesquisas Urbanas (NaMargem) da Instituição. 


A obra é uma adaptação de sua tese de doutorado - sob orientação de Gabriel Feltran, docente no Departamento de Sociologia (DS) da UFSCar -, resultado de uma trajetória de pesquisa em uma favela de Belo Horizonte (MG), iniciada em 2011, ainda em seu estágio de graduação em Psicologia.

Em seu trabalho de campo, Beraldo desenvolve uma pesquisa etnográfica no território, que consiste em uma inserção profunda em determinado contexto, durante um período - entre 2016 e 2020.

Esse mergulho, por parte da pesquisadora, envolveu debates, oficinas, entrevistas, exercícios de escuta e escrita e rodas de conversa em espaços do Morro da Luz, como escolas, cursinho pré-vestibular comunitário, grupo cultural, Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), centro de saúde e organização internacional missionária evangélica.

"Pude acessar uma grande quantidade de interlocutores, como jovens, idosos, estudantes universitários e analfabetos", registra Beraldo.

Segundo a pesquisadora, existe um senso comum de que os espaços de favelas e periferias são bagunçados, mas o debate teórico mostra que, na verdade, existe ali mais de uma norma. "São ordens que conduzem a vida das pessoas, definindo certo e errado e determinando comportamentos e relações. Essas normas são definidas principalmente por três eixos, abordados neste livro: Estado, igreja e mundo do crime", explica Beraldo.

Com 249 páginas, a obra é estruturada em duas partes. A primeira, "Múltiplas legitimidades", caracteriza cada um desses eixos e como estão inseridos na realidade vivida na favela.

"O Estado define diretrizes de que é certo, por exemplo, ser trabalhador, respeitar os vizinhos, entre outras; as igrejas comumente delimitam como as pessoas devem agir para estar em consonância com determinada fé; e, nas últimas décadas, o crime passou a se constituir como um produtor de normatividades, também. O comportamento das pessoas passa a ser guiado pelo que o crime define que deve ou não ser feito", destaca a pesquisadora.

Na segunda parte da obra, intitulada "A construção cotidiana do certo", Beraldo analisa a interação entre esses três eixos, que atuam de forma simultânea. "Surgem, nesta coexistência, questões como 'quem merece respeito e quem respeita?'. Quanto mais respeitabilidade é atribuída a uma pessoa, maior o valor da vida dela. A vida de um senhor de idade, trabalhador e religioso é mais valorada do que a de um dependente químico", exemplifica.

Assim, ela desenvolve o argumento de que, na favela estudada (e, possivelmente, em demais espaços periféricos no País), os níveis de precariedades das vidas são definidos pelo encontro dessas três moralidades que, em coexistência no cotidiano das favelas, constroem, entre si, relações simbólicas.

"Essas relações se alternam entre disputa e articulação, produzindo um mecanismo de análise moral de pessoas e comportamentos. Com isso, tem-se uma classificação entre vidas mais ou menos importantes - ou seja, corpos que são mais ou menos passíveis de serem alvos de violência na favela. Uma negociação entre vida e morte", detalha.

E vai além: para entender como essas relações podem ser móveis, a autora propõe uma analogia para se pensar a construção social, com o conceito chamado por ela de massinha de modelar do enquadramento. Na massinha, moldar formas e acrescentar cores diversas resulta em objetos variados e pode trazer novos enquadramentos. "O mesmo acontece com os três eixos estudados: a depender da modelagem, trazem outras configurações de sociedade", registra a pesquisadora.

Ela exemplifica: "É possível que o menino do crime se converta e passe a ser respeitado como um trabalhador, religioso, mudando seu status de respeitabilidade; por isso, as relações são móveis. Há chance de uma vida passar a ser mais valorada a partir de determinado momento. Ou seja, uma mesma pessoa pode ter estágios em que sua vida é mais ou menos valorada, sendo mais ou menos vítima de violência", ressalta.

Ao entender o funcionamento dessas dinâmicas, a obra traz, para reflexões, questões estruturais profundas das sociedades periféricas. "Com isso, nos distanciamos de respostas simplistas e de colocar o problema em um só grupo social, percebendo a importância de um conjunto de ações mais amplas e que envolvam toda a sociedade", complementa Beraldo.


Adriana Arruda - Publicado em 31-10-2022 16:00

Publicado em: https://www.ufscar.br/noticia?codigo=15027


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