Proselitismo religioso com recursos públicos fere laicidade do Estado.
Entrevista especial com André Ricardo de Souza
Diferentes denominações religiosas
fazem uso de dinheiro público para prática assistencial com finalidade
lucrativa, colocando em risco o princípio constitucional do Estado laico
Por: IHU e Baleia Comunicação | 12 Setembro 2024
O cristianismo
está na formação do Brasil enquanto
Estado. Chegou junto com o descobrimento e está alicerçado na crença dos
ensinamentos de Jesus Cristo. Majoritariamente representado pelo catolicismo, o cristianismo brasileiro
vive um fenômeno de transição religiosa, com especial crescimento dos evangélicos neopentecostais. Estimativas indicam que haverá uma troca de hegemonia na
primeira metade deste século, com os católicos deixando de ser maioria.
Essa
reconfiguração do campo religioso
brasileiro exerce um papel social e político em diferentes espaços
públicos. Mas, esse não é um fato recente. “Vemos, desde a eleição para a Assembleia Constituinte de 1986, a
grande participação de evangélicos pentecostais na política partidária,
formando grandes bancadas nas casas legislativas”, pontua o sociólogo André Ricardo de Souza, em entrevista concedida
por e-mail ao Instituto Humanitas
Unisinos – IHU. Para ele, esses atores foram fator decisivo na “mobilização
do ativo eleitoral evangélico para a eleição presidencial de Jair Bolsonaro em 2018 e tem sido também em
outros pleitos majoritários para cargos executivos”, assinala.
Contudo,
as práticas financeiras que muitas
instituições religiosas adotam não seguem o modelo de gratuidade proposto nos evangelhos. “A meu ver, é a grande
movimentação econômica, isenta de impostos, por determinadas denominações,
destacadamente a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), ligada a empresas
bastante lucrativas e impulsionadas por doações de fiéis, sendo a maior parte
deles de baixa renda”, destaca o professor, que acaba de lançar o livro O
cristianismo brasileiro contemporâneo: aspectos econômicos, assistenciais,
políticos e ecumênicos (EdFUSCar e FAPESP, 2024). “Algo que fere o princípio cristão da gratuidade
caritativa”, complementa.
André Ricardo de Souza é doutor em sociologia
pela USP, professor associado do Departamento de Sociologia e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, pesquisador do CNPq, coordenador do
Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política (NEREP) e autor de O
cristianismo brasileiro contemporâneo: aspectos econômicos, assistenciais,
políticos e ecumênicos (EdFUSCar e FAPESP, 2024).
Confira a entrevista.
IHU – O que significa ser
cristão no Brasil hoje?
André Ricardo de Souza – Ser cristão no Brasil
hoje significa fazer parte de um amplíssimo e muito heterogêneo segmento
religioso, composto por diferentes igrejas e instituições afins, que têm em
comum, evidentemente, a crença em Jesus
Cristo, a partir de diferentes interpretações teológicas e doutrinárias.
Estas interpretações, por vezes, são bastante contraditórias e até antagônicas
entre si em termos da compreensão das questões de direitos humanos e da desigualdade
social, por exemplo.
IHU – O senhor lançou
recentemente o livro O Cristianismo
Brasileiro Contemporâneo: aspectos econômicos, assistenciais, políticos e
ecumênicos. Do que trata a obra?
André Ricardo de Souza – O livro trata das
principais configurações econômicas e assistenciais do cristianismo nacional e suas implicações e consequências políticas,
assim como determinadas experiências de diálogo inter-religioso entre as três grandes
tradições cristãs, compostas por católicos,
evangélicos e espíritas. Este último segmento é abordado não só devido à sua
crença central em Cristo, mas também pela materialização do princípio da caridade em relevantes
obras assistenciais.
IHU – Quem são os
neocristãos e por que eles têm esse nome?
André Ricardo de Souza – Eles compõem tradições
religiosas que não integram o segmento dos evangélicos
e que fazem interpretação peculiar dos textos bíblicos, abrangendo: testemunhas de Jeová, mórmons e adventistas
do sétimo dia. No censo demográfico de 2000, foram considerados como
neocristãos também adeptos da Legião da
Boa Vontade (LBV) e do espiritismo. No âmbito do neocristianismo, os espíritas se destacam pelo ressaltado
fator assistencial e por constituírem o terceiro maior grupo religioso (2%,
ainda conforme o, quase defasado, censo de 2010), atrás de católicos (64,6%) e
evangélicos (22,2).
IHU – Qual é o maior paradoxo que
caracteriza o cristianismo brasileiro?
André Ricardo de Souza – A meu ver, é a grande
movimentação econômica, isenta de impostos, por determinadas denominações,
destacadamente a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), ligada a empresas
bastante lucrativas e impulsionadas por doações de fiéis, sendo a maior parte
deles de baixa renda, portanto algo que fere o princípio cristão da gratuidade caritativa. Tais atividades
econômicas são beneficiadas pela ação de parlamentares também vinculados às
igrejas, que atuam enfaticamente em prol da prosperidade dos negócios ligados a
elas.
IHU – Como se caracteriza a dimensão assistencial e como ela se
liga ao cristianismo brasileiro?
André Ricardo de Souza – A dimensão assistencial é
a mais abrangente e antiga do cristianismo
mundial e do brasileiro também, estando histórica e predominantemente
ligada às organizações católicas,
atuantes nas áreas de saúde e de auxílio a extratos sociais vulneráveis, por
vezes, em parceria com o poder público. Os espíritas
são menos afeitos à relação com o Estado e, como dito, contam com relevantes
instituições assistenciais, fazendo trabalho cotidiano e capilarizado em seus
centros. Já os evangélicos realizam
também atividades assistenciais no âmbito de determinadas igrejas, bem como em
ecumênicas organizações não governamentais.
IHU – Em que pese o
trabalho de entidades assistenciais que trabalham, por exemplo, com dependentes
químicos ser uma atividade respeitável, não raras vezes as condições sanitárias
e de tratamento dessas pessoas são precárias. Por outro lado, essas entidades
recebem polpudos recursos da bancada evangélica. Como compreender essas
complexidades?
André Ricardo de Souza – Trata-se de uma face efetivamente complexa e paradoxal do trabalho assistencial, feito muito predominantemente por evangélicos. Embora haja atendimento a pessoas e famílias necessitadas, este é feito, por vezes, em condições precárias, em termos sanitários. Além disso, fere o princípio da laicidade do Estado, uma vez que ocorre proselitismo e certa conversão impositiva, mediante o uso de recursos públicos. Há, por fim, combinação de prática assistencial com a econômica lucrativa em face do pagamento das famílias pelo serviço prestado.
IHU – A propósito,
considerando que o Estado brasileiro é laico, não há, aí, uma contradição em
repassar recursos públicos a entes ligados a igrejas evangélicas ou católicas
ou grupos ligados ao espiritismo?
André Ricardo de Souza – O repasse de recursos públicos a organizações religiosas, assim como a
entidades laicas, para a realização de trabalho assistencial, é algo relevante,
em termos do benefício social propiciado. Não se trata de algo contraditório
com a laicidade do Estado, desde que
isento de proselitismo ostensivo,
sobremaneira a indivíduos que não podem, efetivamente, recursar isso, como é o
caso dos internados em instituições.
IHU – Como o senhor vê a isenção
de impostos às igrejas? Há algum sentido lógico
nisso? Qual?
André Ricardo de Souza – Parte-se do princípio de que as igrejas e
demais instituições religiosas se pautam pela gratuidade em suas práticas e realizam atividades assistenciais
desinteressadas economicamente. Entretanto, como visto no caso das igrejas ligadas a negócios bastante
lucrativos, com destaque para a IURD, essa não é, nem de longe, a realidade.
Daí a necessidade de um franco debate púbico a respeito, embora a grande
representação de igrejas no Congresso
Nacional e o peso eleitoral dos evangélicos,
por ora, impeçam isso, infelizmente.
IHU – Nos últimos anos, testemunhamos uma ascensão de
representantes políticos ligados a igrejas neopentecostais. Tal fato é atestado
pelo que se chama “bancada
da Bíblia”. Como essa politização
eleitoral entrou no cristianismo brasileiro e quais suas consequências sociais
mais imediatas?
André Ricardo de Souza – Vemos, desde a eleição para a Assembleia Constituinte de 1986, a
grande participação de evangélicos pentecostais na política partidária,
formando grandes bancadas nas casas legislativas. A mobilização do ativo
eleitoral evangélico foi muito importante para a eleição presidencial de Jair Bolsonaro em 2018 e tem sido também em outros
pleitos majoritários para cargos executivos. Entretanto, os evangélicos, assim como demais
segmentos religiosos, têm o pleno direito democrático de participarem da vida
política, cabendo, a meu ver, aos partidos de esquerda e aos políticos
progressistas desenvolverem, efetivamente, o modo como se comunicam com os
evangélicos e demais segmentos religiosos conversadores, como os católicos carismáticos, por exemplo.
IHU – Na década de 1980 setores importantes do Partido dos
Trabalhadores - - PT foram construídos a partir de movimentos de base da Igreja
Católica. Mais recentemente temos algumas igrejas pentecostais servindo como
base eleitoral e política à extrema-direita. Apesar das vicissitudes do PT a
sigla sempre teve como paradigma um projeto civilizatório de respeito à
democracia. Não se pode dizer o mesmo da extrema direita, que não raras vezes
descamba em um discurso, a rigor, anticristão e antidemocrático. Isto posto,
como compreender o cristianismo brasileiro à luz desses dois momentos históricos?
André Ricardo de Souza – De fato, o cristianismo da libertação gerou, nos anos 1980 e em
grande medida, o novo sindicalismo do
ABC Paulista, o PT e relevantes
movimentos sociais, principalmente o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
dando, portanto, importante contribuição para a democracia brasileira. Naquela
mesma década, como visto, os evangélicos pentecostais se engajaram na política
partidária, exercendo seu direito democrático. Mas, infelizmente, no meio
evangélico dos últimos anos, não apenas pentecostal, mas também de algumas
igrejas protestantes históricas, cresceu o posicionamento político de extrema-direita, enquanto algo que desafia a democracia
os avanços civilizatórios. O complexo e heterogêneo cristianismo no Brasil abrange ambos os polos.
IHU – Deseja acrescentar algo?
André Ricardo de Souza – Queria chamar atenção para
dois fatos. O primeiro de que, no Brasil, em vez de um pluralismo religioso, que pressupõe não só a existência de uma
diversidade de tradições de fé, mas também de assegurada liberdade religiosa, nós temos, uma pluralidade cristã, dado que, além de haver uma ressaltada minoria
não cristã no país (3%, segundo o censo de 2010), parte dela, fundamentalmente,
os adeptos dos cultos afro-brasileiros,
sofre grande perseguição religiosa. Já o segundo fato é que,
a meu ver, uma expressão genuinamente cristã, porque caritativa, é exatamente a
de solidariedade ecumênica aos
discriminados e vitimados por intolerância
étnico-racial, sexual e religiosa, inclusos os ateus e
agnósticos.
Disponível em:
https://www.ihu.unisinos.br/643544-proselitismo-religioso-com-recursos-publicos-fere-laicidade-do-estado-entrevista-especial-com-andre-ricardo-de-souza